Fatores socioeconômicos e saúde

Melgaço, município de 26 mil habitantes no arquipélago de Marajó, no Pará, recebeu a menor pontuação total, -1, na avaliação do contexto socioeconômico pelo índice GeoSES
Marcelo Lelis/Ag. Pará

Novo índice detalha peso de variáveis socioeconômicas em doenças

Por Carlos Fioravanti/Revista FAPESP

Quase sempre não basta a ação de vírus, bactérias ou protozoários para as doenças infecciosas avançarem. “Não podemos nos esquecer dos fatores de risco, que se agrupam no território”, alerta a geógrafa Ligia Vizeu Barrozo, da Universidade de São Paulo (USP). Com uma equipe de estatísticos, matemáticos e médicos, a pesquisadora coordenou a construção do Índice Geográfico do Contexto Socioeconômico para Estudos Sociais e Saúde (GeoSES). Apresentado em um artigo publicado em abril de 2020 na revista PLOS ONE, o índice mostra como o local de moradia, a escolaridade, a renda, entre outros fatores, podem determinar o avanço dos patógenos.

“A relação entre pobreza e saúde já era bastante conhecida, mas a situação muda de lugar para lugar, de acordo com variáveis socioeconômicas”, diz a pesquisadora. Com base em informações do Censo Demográfico de 2010, o novo índice indica por que grupos específicos da população ficaram ou devem ficar doentes, com base em sete dimensões: renda média domiciliar, educação, mobilidade, pobreza, riqueza, privação material e segregação residencial (distanciamento residencial entre grupos econômico-raciais diferentes). “O índice expressa a desigualdade social no Brasil”, comenta (ver quadro).

Essas e outras variáveis – como emprego, cultura, etnia e gênero – são os determinantes sociais da saúde. Elas indicam que o risco de adoecer é menor entre as pessoas com renda e escolaridade mais altas, por causa do acesso à prevenção e ao tratamento, do que os indivíduos na situação inversa, de pobreza.

Mesmo que as grandes epidemias tenham atingido principalmente pessoas pobres, o efeito dos determinantes sociais de saúde tem sido pouco valorizado no enfrentamento da pandemia de Covid-19, observaram Elissa Abrams, da Universidade de Manitoba, Canadá, e Stanley Szefler, da Universidade do Colorado, Estados Unidos, em um artigo publicado na Lancet Respiratory Medicine em 18 de maio. Por exemplo: em Chicago, nos Estados Unidos, eles argumentam, a incidência da doença não decorre apenas da renda, mas também da etnicidade: os moradores negros, que respondem por 30% da população do município, concentraram 50% dos casos de Covid-19 e quase 70% das mortes ligadas a essa doença.

No Brasil, os primeiros casos de Covid-19 foram registrados em bairros centrais e de maior poder aquisitivo da cidade de São Paulo, de acordo com os levantamentos da prefeitura. Depois a epidemia se concentrou nos bairros mais pobres da capital e se espraiou para outras cidades.

Além desse espalhamento em São Paulo e outros estados, Barrozo, com o GeoSES, observou que 44% do risco de óbito por Covid-19 no Brasil estava associado à renda média das residências, em dois padrões distintos, em 6 de junho de 2020. Enquanto nas regiões Sul e Sudeste os casos se concentram em municípios com renda mais alta, no Norte e Nordeste o risco é maior em municípios com moradores com renda mensal média menor. No município de São Paulo, a mortalidade por Covid-19 tem sido maior nas áreas de menor renda e escolaridade das zonas Leste e Norte.

Doenças crônicas
O contexto socioeconômico, em conjunto por determinar a qualidade da alimentação, o estilo de vida, o nível de estresse no dia a dia e o acesso a serviços de saúde –, explicou a maioria das mortes por doenças cardiovasculares entre 2006 e 2009 no município de São Paulo, onde o índice foi aplicado inicialmente. A segregação residencial e a educação – “duas variáveis muito relacionadas”, ela ressalta –, isoladamente, estiveram associadas a 65% do risco de morte. A privação material, a 59%, e a mobilidade a 57% do risco de morrer por alguma doença cardíaca.

“As variáveis que influenciam o afloramento de doenças se relacionam. Não é apenas um fator, como o tempo gasto em transporte ou a privação de recursos materiais e de serviços, que facilita a instalação de enfermidades”, observa a pesquisadora.

O índice detectou o peso do contexto socioeconômico, principalmente da segregação socioeconômica e racial (ser pobre e negro), para a mortalidade infantil na capital paulista. Como se poderia esperar, outras doenças, a exemplo do câncer de próstata, também examinado, apresentaram uma distribuição geográfica aleatória, sem um padrão espacial.

Rodrigo Tetsuo Argenton / Wikimedia Commons Santana de Parnaíba, município de 100 mil habitantes na Grande São Paulo, recebeu a melhor pontuação, +1, no índice GeoSESRodrigo Tetsuo Argenton / Wikimedia Commons

Visão nacional
“Se uma pessoa não reconhece os sintomas ou não tem recursos para tomar um ônibus, ou não existe um ônibus próximo, pode demorar a ir para um posto de atendimento e terá chance menor de tratamento e de recuperação”, observa o médico Edson Amaro Júnior, superintendente de Ciência de Dados e Analytics do Hospital Israelita Albert Einstein (Hiae).

Em 2018, ele convidou Barrozo para integrar a equipe de pesquisadores da área de big data em um projeto do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (ProadiSUS), financiado pelo Ministério da Saúde. Desse modo o alcance do índice cresceu, passando dos 533 mil questionários completos do Censo de 2010 usados nas análises do município de São Paulo para os 6,4 milhões de todo o país.

Nessa etapa, o GeoSES foi aplicado em três escalas: nacional, estadual e municipal. Os pesquisadores analisaram as sete dimensões para cada um dos 140 municípios brasileiros com mais de 190 mil habitantes, a população mínima necessária para definir as áreas de amostragem no Censo, escolhidas por sorteio, como questionários detalhados sobre os moradores. O trabalho evidenciou as áreas mais vulneráveis do país ou de cada estado.

O Pará emergiu como o estado com os piores resultados. Melgaço, no arquipélago de Marajó (PA), recebeu a menor pontuação total, de -1, e Santana de Parnaíba, na Grande São Paulo, a melhor pontuação, +1 (ver tabela). Os dados básicos sobre cada um dos 140 municípios examinados encontram-se na página do DataSUS, do Ministério da Saúde.

Barrozo começou a elaborar o GeoSES em 2015 ao ver que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que pretendia usar, não indicava o peso isolado das determinantes sociais de saúde, porque se vale de outras variáveis para avaliar o nível de vida dos moradores de um lugar. Os resultados entre os dois índices foram próximos: a cidade de São Caetano do Sul, na Grande São Paulo, obteve a pontuação máxima do IDH e a segunda maior no GeoSES.

Usando o IDH, a cientista social Vera Schattan Pereira Coelho, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), observou que a distribuição espacial dos serviços do SUS contribuiu para reduzir a desigualdade em saúde na cidade de São Paulo de 2001 a 2016, como detalhado em um artigo publicado em setembro de 2019 na revista Novos Estudos. “O GeoSES ajuda a ver quais as variáveis socioeconômicas mais importantes e quais o gestor público deveria priorizar para amenizar os problemas de saúde”, diz ela.

A médica epidemiologista Maria Yury Ichihara, vice-coordenadora do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) da Bahia, explica por que o novo índice poderia contribuir nas análises das desigualdades sociais e para a melhoria das ações em saúde do setor público: “Hoje predomina o modelo de assistência médico-hospitalar, segundo o qual é necessário focar na atenção médica e nos métodos diagnósticos e terapêuticos para melhorar a saúde”. Segundo ela, esquece-se da importância do estilo de vida, da alimentação, do acesso a áreas verdes e das horas gastas em transporte. “Índices como o GeoSES valorizam esses aspectos relacionados à condição de vida, fundamentais para a promoção da saúde.”

Ichihara participou de uma análise de informações de 114 milhões de brasileiros, mantidas no Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), do governo federal, entre 2001 e 2015. Desse total, 23.911 eram pessoas que tinham ou tiveram hanseníase. O trabalho, publicado na Lancet Global Health em julho de 2019, indicou que a incidência da doença pode ser duas vezes maior nos grupos com níveis de renda e escolaridade mais baixos que os da população geral.

Em colaboração com especialistas da Universidade de Glasgow, na Escócia, uma equipe do Cidacs elaborou um índice brasileiro de privação, com base em três indicadores do Censo 2010 – escolaridade, renda e condições de moradia –, com o mesmo propósito do GeoSES: identificar as desigualdades sociais em pequenas áreas e fortalecer as políticas públicas para as populações mais vulneráveis. Ichihara faz parte da equipe que pretende lançar o novo índice ainda em 2020.

Projeto
Uso de modernas técnicas de autópsia na investigação de doenças humanas (Modau) (nº 13/21728-2); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Paulo Hilário Nascimento Saldiva (USP); Investimento R$ 5.793.636,29.

Artigos científicos
BARROZO, L. V. et al. GeoSES: A Socioeconomic Index for Health and Social Research in Brazil. PLOS ONE. v. 15, n. 4, e0232074. 29 abr. 2020.
ABRAMS, E. M. e SZEFLER, S. J. Covid-19 and the impact of social determinants of health. Lancet Respiratory Medicine. v. 8, n. 5, p. 30234-4. 18 mai. 2020.
SCHATTAN P. COELHO, V. et al. Accountability e redução das desigualdades em saúde: A experiência de São Paulo. Novos Estudos. v. 38, p. 323-49. 5 set. 2019.
NERY, J. S. et al. Socioeconomic determinants of leprosy new case detection in the 100 million brazilian cohort: A population-based linkage study. Lancet Global Health. v. 7, n. 9, p. 1226-36. 19 jul. 2019.

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Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

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