Vacina: milagre da Medicina

Fabio Franco

Médico do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (USP), especialista em Clínica Médica e em Infectologia

Nesse momento de pandemia, observa-se crescente interesse público pelo assunto vacinas, talvez pelo fato de representarem o instrumento com maior possibilidade de melhorar a situação pandêmica por COVID-19.

As vacinas podem ser consideradas em seu conjunto, como os recursos que mais salvaram vidas e reduziram incapacidade dentre as descobertas da Medicina. Não obstante, vicejam nos meios de comunicação e mídias sociais, conceitos errôneos, que acabam por induzir ao desencorajamento do uso destes recursos, tendo como consequência a ocorrência de muitas mortes desnecessárias.

Para dar uma ideia da eficácia de algumas vacinas, eis alguns dados da redução da ocorrência de algumas doenças comparando as eras pré e pós-vacina (dados dos EUA):

Difteria – próximo de 100%;

Infecções invasivas por Haemophilus Influenza - acima de 95%;

Hepatite A – 90%;

Hepatite B – 80%,

Sarampo – 98%;

Caxumba – 92%;

Poliomielite – 100%;

Rubéola – 98%;

Varicela – 88%.

Não existem na medicina outras intervenções que cheguem perto desses valores em eficácia (Fig. 1). Poderíamos dizer sem medo de errar que a vacinação é o milagre da medicina moderna. Existem evidências de que salvaram mais vidas do que qualquer outro produto ou procedimento médico.

Figura 1 - Casos de sarampo no Reino Unido de 1940 a 2006

Segundo outra fonte também dos EUA - Comparação do número de casos no século 20 - com ocorrência em 2017, alguns exemplos:

Varicela (Catapora) – de 29.005 para zero;

Sarampo – de 530.217 para 120;

Poliomielite – de 16.316 para zero;

Coqueluche – 200.752 para 18.975.

Mas o que é uma vacina? A aplicação de uma vacina visa induzir artificialmente a ativação de mecanismos diversos de proteção imunológica, que entram em ação quando e se o indivíduo posteriormente é exposto à doença específica para qual essa vacina protege. De maneira simplificada – o sistema imune exposto à vacina já "aprendeu" previamente a "lidar" com o agente infeccioso agressor. Uma outra definição resumida de vacina seria – uma suspensão de micro-organismos ou frações deles – vivos ou inativados - que são administrados para induzir imunidade e prevenir infecções.

Tomemos como exemplo o Sarampo – quando ocorre naturalmente, costuma induzir imunidade duradoura na maioria dos vacinados. Porém, a doença, altamente contagiosa, pode, além do desconforto característico (febre, coriza, conjuntivite, mal-estar, manchas no corpo etc.), causar sequelas em crianças, podendo ser extremamente grave em adultos e fatal em indivíduos imunodeprimidos. O que é a vacina do sarampo? Trata-se do próprio vírus do sarampo, vivo, porém, atenuado. Uma cepa de vírus do sarampo coletada de uma criança em 1954 foi cultivada sequencialmente em diversas linhagens celulares e esse procedimento levou à perda da virulência (agressividade clínica), mantendo, porém, sua capacidade de induzir imunidade. Ou seja – a “infecção” vacinal deliberada com essa cepa atenuada produz proteção excelente, causando poucos ou nenhum evento adverso.

Existem inúmeros tipos de vacinas – todas visando promover de modo artificial a imunidade a uma determinada doença antes da exposição:

  • Organismos inativados– o agente infeccioso (principalmente vírus e bactéria) é inativado por métodos químicos ou físicos, sendo utilizados por vezes apenas fragmentos do organismo (por exemplo na vacina da Influenza), mantendo sua capacidade (variável) de induzir imunidade, sem causar a doença. Exemplo – Vacina Coronavac contra COVID-19.
  • Toxóides - Para algumas doenças usam-se ao invés do organismo ou suas frações, toxinas modificadas (toxoides), que são componentes de virulência produzidos e secretados pelo agente infeccioso, que nas vacinas mantêm sua capacidade de induzir imunidade, mas, através da aplicação de métodos físicos ou químicos têm reduzida sua capacidade de causar doença. Exemplos – Difteria e Tétano.
  • Vírus atenuados – vejam explicação no exemplo do sarampo. Vacinas de vírus vivos tendem a apresentar respostas imunes mais próximas daquelas induzidas pela doença, por conseguinte, costumam ter mais eficácia do que aquelas de micro-organismos inativados. Exemplos – Varicela, Rubéola, Caxumba. Porém, essas vacinas não devem ser usadas em gestantes ou em pessoas com algumas doenças ou situações de depressão imune.
  • Imunoglobulinas – Embora não sejam propriamente vacinas, em algumas situações em que não há tempo hábil para o sistema imune produzir sua resposta, usam-se as Imunoglobulinas – são anticorpos já pré-formados, muitas vezes extraídos e purificados do sangue de pessoas que já tiveram a doença, sendo, portanto, ricos nos anticorpos específicos para a doença em questão - são aplicados no paciente, por via intramuscular ou endovenosa – exemplos – tétano e raiva.

As tecnologias de projeto e desenvolvimento de novas vacinas têm tido um enorme avanço recente. Isso pode ser exemplificado com tecnologias que têm sido empregadas nas vacinas contra COVID-19.

Além dos tipos de vacinas descritos, há novas vacinas que usam vírus vivos não patogênicos, ou seja, não causadores de doenças - (adenovírus), que agem como meros transportadores (a vacina Russa Sputnik usa essa técnica), carreando partes do genoma – RNA ou DNA – ou fragmentos do agente infeccioso que, ao serem reconhecidos pelo sistema imune, levarão à modulação de resposta imune.

Nunca se havia conseguido em tempo tão exíguo criar e estudar vacinas como nesse ano de pandemia de COVID-19, mesmo em meio a todos os tipos de dificuldades e adversidades. Trata-se da ciência agindo em favor da Humanidade. Foram celebrados acordos de cooperação internacional que muito facilitaram esse progresso.

A eficácia das diversas vacinas é extremamente variável, não havendo vacina totalmente eficaz. Além disso, por vezes, essas têm sua eficácia reduzida nos extremos de idade – dependendo sua resposta também de fatores nutricionais, genéticos e raciais.

Vacinas agem para impedir o estabelecimento da doença; atenuar as manifestações clínicas; reduzir ou impedir a propagação da doença; e também reduzir a ocorrência de formas graves da doença – por exemplo a BCG, que é uma vacina de bactéria com virulência atenuada, reduz formas graves de tuberculose em bebês e crianças pequenas.

De maneira extremamente simplificada, a resposta imune se baseia:

1) Na produção de anticorpos – que são proteínas produzidas por células especializadas do sistema imunológico, que se ligam a componentes dos agentes infecciosos, podendo agir para destruí-los; podendo agir para destruí-los ou impedi-los de penetrar nas células alvo. Estes anticorpos dirigidos especificamente para o agente invasor só aparecem após a exposição à doença ou à vacinação;

2) Na ação direta de células do sistema imune – com ação inespecífica, ou seja, contra qualquer agente infeccioso mesmo que seja o primeiro contato – ou específica – subpopulações de células diferenciadas, ou seja, “especializadas” em tentar destruir organismos específicos. Essa especialização por assim dizer só ocorre após uma exposição prévia. Ou vacinação.

Existem também outros elementos envolvidos nessas respostas de defesa, extremamente complexos e sofisticados.

As vacinas, que podem ser injetadas por via subcutânea, intramuscular ou usadas por via oral, entram em contato com os elementos celulares do sistema imune, que reconhecem características específicas do agente invasor, chamadas de antígenos e iniciam uma resposta de diferenciação celular, criando subpopulações ou clones de células, que são “especializadas” em neutralizar esses componentes através de vários  mecanismos – como produção dos anticorpos e/ou ação direta de outras subpopulações de células, conforme mencionado acima.

O conceito de vacinação existe desde muito antes de a Humanidade conhecer causas das doenças infecciosas. Oficialmente, no mundo ocidental, a primeira tentativa de imunização, para varíola, caberia a um inglês, Edward Jenner, em 1798. A idéia de Jenner inspirou-se num fato de senso comum à época - ocorriam ocasionalmente em algumas regiões da Inglaterra surtos de uma doença semelhante à varíola, a varíola bovina, sendo senso comum que as ordenhadeiras que tinham contato com esta enfermidade podiam ter manifestações clínicas leves, mas não contraíam a varíola, doença que entre outras manifestações, deixa sequelas permanentes em pele de rosto e corpo dos acometidos.

Ciente disso, Jenner retirou material de uma pústula de uma ordenhadeira que estaria com varíola bovina e inoculou esse material numa criança de oito anos, que apresentou a seguir um quadro febril leve de curta duração. Aproximadamente 45 dias depois, Jenner inoculou nessa mesma criança o próprio vírus da varíola, verificando posteriormente que a criança não adoeceu. Experimentos semelhantes usando material extraído de pústulas da própria varíola ja tinham sido realizados previamente, havendo inclusive descrições desse procedimento na Ásia central no início do segundo milênio. Mas Jenner lutou, com êxito, para divulgar essa descoberta. A consequência final desse achado de Jenner e outros foi a declaração, pela OMS em 1988, da erradicação da varíola no mundo!

O fato de um indivíduo optar por não se vacinar com produtos já bem estudados e conhecidos quanto à sua eficácia e segurança tem implicações que vão além da escolha individual, já que a pessoa acometida por doença prevenível pode disseminá-la para terceiros com enorme velocidade. Este é o caso do sarampo - altamente contagioso. Essa questão, portanto, tem várias implicações éticas. A divulgação de informações "anti-vacina", que se propagam com extrema rapidez nas redes sociais, são em sua imensa maioria infundadas, e provenientes de falta de conhecimento e impressões, ao invés de serem baseadas em conhecimento científico e estudos bem concebidos e realizados. Um fato emblemático a esse respeito é um estudo que foi publicado na prestigiada revista inglesa "The Lancet", em 1988, relatando a ocorrência de atraso cognitivo em 12 crianças que receberam a vacina combinada sarampo + caxumba + rubéola. Esse estudo teve grande repercussão pública e ampla divulgação pelos jornais do mundo todo, porém, a posteriori, viu-se que não tinha confiabilidade e seu autor principal, Andrew Jeremy Wakefield tinha conflitos de interesse financeiros, além de ter fraudado dados. A própria revista retratou-se publicando errata. A divulgação desse estudo de baixa qualidade e falsos resultados acarretou graves consequências ao levar ao público informações incorreta, levando o receio aos familiares que passaram a não vacinar seus filhos. Perderam todos.

Vale salientar que as vacinas podem de fato induzir eventos adversos graves. Podem também apresentar respostas inesperadas por parte do sistema imune, induzindo a danos, ou reações que paradoxalmente pioram a capacidade de proteção contra a doença. Esses eventos, porém, são extremamente raros. Isso porque as vacinas antes de serem comercializadas, são submetidas a processos de validação, padronizados por instituições científicas internacionais -caracteristicamente por fases. Na fase pré-clínica o produto é testado em animais de experimentação.  Na fase 1, o produto é testado em número limitado de pessoas visando a observação de eventos adversos.  Na fase 2 a intenção principal é verificar a capacidade do sistema imunológico produzir anticorpos e avaliar a resposta imunológica em populações maiores, e na fase três o objetivo principal é definir sua eficácia. A Coronavac, por exemplo, na fase 3 foi testada no Brasil em aproximadamente 13 mil profissionais de saúde, para depois, após análise dos resultados, ser autorizada, para uso emergencial, pela ANVISA. Mesmo depois de autorizada, a vacina continua sob vigilância, para detectar eventuais eventos adversos raros não detectados nas fases anteriores e para ampliar o conhecimento sobre sua eficácia, particularmente em subgrupos humanos (por idade, etnia, presença de outras doenças, etc.). Por vezes nessa fase detectam-se eventos adversos mais raros.

Talvez seja exaustivo mencionar todas as vacinas ora disponíveis, mas essas são as mais utilizadas. Importante dizer que o Brasil, com seu Programa Nacional de Imunizações criado em 1973 é muito respeitado em todo o mundo por sua organização e eficiência. Abaixo seu calendário vacinal para crianças e adultos (Fig. 2):

Figura 2 - Calendário Vacinal PNI - MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020

ALGUMAS VACINAS E SUAS AÇÕES DE PROTEÇÃO: 

BCG – (formas graves da tuberculose em crianças pequenas)

Rotavírus - (infecção intestinal em crianças pequenas)

Pentavalente - Difteria, Tétano, Coqueluche, Haemophilus influenza B, hepatite B

Pneumococo (pneumonias, otites, meningites)

Neisseria meningitidis - contra cada um dos subtipos - A, C, W, Y (meningites)

Hepatite A (uma das formas de hepatite viral)

Febre Amarela

HPV - do inglês - Human Papillomavirus - (câncer de colo de útero e verrugas genitais)

Influenza (gripe)

Varicela-Zoster (Herpes Zoster)

Cólera  (doença diarreica grave)

 

FONTES CONSULTADAS:

  • MANDEL, DOUGLAS, BENNET – PRINCIPLES AND PRACTICE OF INFECTIOUS DISEASES, NINTH EDITION, 2020 John E. Bennett MD, Raphael Dolin MD and Martin J. Blaser MD
  • THE VACCINE BOOK, SECOND EDITION, 2016 Barry R. Bloom and Paul-Henri Lambert
  • PLOTKIN'S VACCINES, SEVENTH EDITION, 2018 - Stanley A. Plotkin MD,
  • Walter A. Orenstein MD, DSc (HON), Paul A. Offit MD and Kathryn M. Edwards MD
  • THE MEDICAL LETTER – VOL - 60 MAY 7 - 2018
  • THE NEW ENGLAND JOURNAL OF MEDICINE – VACCINE INOVATIONS – PAST AND FUTURE, FEBRUARY 4, 2021
  • CALENDÁRIO VACINAL PNI – MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020 https://www.saude.go.gov.br/files/imunizacao/calendario/Calendario.Nacional.Vacinacao.2020.atualizado.pdf

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