Cidade e COVID-19

Ligia Vizeu Barrozo

Professora Associada do Departamento de Geografia/FFLCH, Universidade de São Paulo e Coordenadora do Grupo de Estudos Espaço Urbano e Saúde

Sobre densidade demográfica e COVID-19

A cidade é o habitat preferencial do Homo sapiens atual [1]. No geral, as cidades nos fornecem conforto e vida mais longa. No entanto, os impactos ambientais causados pelo grande contingente populacional que atraem, acabaram por promover princípios de planejamento urbano norteados pela sustentabilidade. Estes novos princípios incluem a ideia de densidade (compactação), conectividade, caminhabilidade e diversidade.

No mundo ocidental, contudo, o que pouco preocupava era a emergência de uma nova doença viral. Foi a morte de quase 1.800.000 pessoas em todo o mundo pelo novo coronavírus durante o ano de 2020, que forçou o questionamento sobre a organização espacial de nossas cidades. O princípio mais polemizado, é claro, tem sido o da densidade populacional [2].

No ambiente urbano, a densidade demográfica reduz distâncias, custos de infraestrutura viária e energia, reduz o tempo de deslocamento e a poluição do ar, incentiva a caminhada e o uso da bicicleta; aproxima as pessoas. Mas quando emerge uma doença que depende da transmissão pessoa a pessoa, a densidade precisa ser repensada.

É assim que, por meio de mapas, temos buscado algumas respostas. Afinal, de qual densidade estamos falando? Partindo-se do caso do município de São Paulo, o maior do Brasil, com mais de 12 milhões de habitantes, calculamos o risco relativo de óbitos por COVID-19 ocorridos desde o início da pandemia até 23 de novembro de 2020. Onde se encontram as áreas com excesso de óbitos considerando-se a população residente por sexo e faixa etária? A Figura 1 nos traz a resposta.

Fig. 1: Agrupamentos de óbitos por COVID-19 em São Paulo, Brasil, de março a 23 de novembro de 2020.

E a densidade demográfica do município, como se distribui? Se considerarmos os dados de população por área, usando a grade fornecida pelo IBGE, conseguimos perceber os tons escuros (maior densidade) em áreas específicas. Estas, entretanto, nem sempre coincidem com as áreas de maior risco de óbitos (Figura 2).

Assim, pode-se ponderar que a densidade demográfica defendida como sustentável difere da densidade habitacional, esta sim, coincidente com as áreas de maior risco. A alta densidade demográfica em áreas dos Distritos Bela Vista, Consolação, Santa Cecília e partes dos Distritos Jardim Paulista e Vila Mariana, áreas nobres da Capital, não se associa com o excesso de óbitos. Nem tampouco a comunidade de Paraisópolis (a maior densidade populacional do Brasil) e o Distrito Cidade Ademar, áreas socialmente vulneráveis. À densidade demográfica das áreas tem sido creditada a maior rapidez no espalhamento da epidemia e não o excesso de óbitos em si. No caso de São Paulo, diversos outros fatores devem ser considerados. A alta densidade causada pela verticalização em áreas nobres não expõe os habitantes de domicílios com poucas pessoas que, desde o início, puderam manter o isolamento físico. Home office, compras pela internet que incluíram desde entregas de supermercados, farmácias e refeições, a adoção do uso de máscaras e álcool em gel e o acesso aos melhores serviços de saúde foram privilégios de poucos. Por outro lado, nas periferias de São Paulo, a heterogeneidade espacial não permite uma resposta generalizada para a questão da densidade. O apoio do terceiro setor de forma localizada tem sido fundamental para a redução do impacto em distritos de alta densidade demográfica e alta densidade de moradores por domicílio. A atuação do G10 Favelas, por exemplo, tem reduzido a fome e planejado iniciativas para gerar microcrédito para os empreendedores das comunidades em que atua. 

Fig. 2: Densidade demográfica (mapa da esquerda) e agrupamentos de excesso de óbitos por COVID-19 sobre densidade demográfica (mapa da direita). São Paulo, Brasil.

Certamente, a escala de análise é fundamental para se compreender o papel da densidade populacional. Aqui a análise é feita com a menor granularidade possível [3], seguindo princípios do mapeamento dasimétrico [4]. Faz-se necessário estudar a disseminação e o impacto da doença em outras cidades populosas e densas do mundo. Em São Paulo, a variabilidade intraurbana não permite condenar a ideia de compactação. Longe disso, a pandemia escancara e coloca em xeque as condições desiguais das densidades dentro das habitações e a qualidade de vida das cidades brasileiras. O contexto socioeconômico do espaço urbano de São Paulo tem explicado a evolução espaço-temporal da COVID-19 por vários motivos, que serão evidenciados em outras matérias, sendo a densidade de moradores nas residências apenas um deles.

Notas

[1] Em 23 de maio de 2007, as estimativas populacionais indicaram que a população urbana global ultrapassava a população rural. Fonte: The World Bank.

[2] Carozzi, F., Provenzano, S, Roth, S. (2020) Urban Density and Covid-19.
Wheaton, W.C., Thompson, A.K. (2020) Doubts about Density: Covid-19 across Cities and Towns.

Hsu (2020) Population density does not doom cities to pandemic dangers.

[3] Utilizou-se a Grade Estatística do IBGE cujos dados numéricos são provenientes dos microdados do universo do Censo Demográfico 2010. Os dados vetoriais diretamente utilizados correspondem aos pontos de localização dos domicílios nas áreas rurais, às linhas vetoriais das faces de logradouros e às divisões de setores censitários. A grade é formada por células de 200 m x 200 m nas áreas urbanas e de 1000 m x 1000 m nas áreas rurais.

[4] Barrozo LV, Pérez-Machado RP, Small C, Cabral-Miranda W. Changing spatial perception: dasymetric mapping to improve analysis of health outcomes in a megacity. Journal of Maps, v. 11, p. 1-6, 2015.

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