Cidades Saudáveis e Inclusivas: o grande desafio da década?

Carlos Leite

Professor Adjunto na FAU-Mackenzie e coordenador do Núcleo de Urbanismo Social do Insper

Ligia Vizeu Barrozo

Professora Associada do Departamento de Geografia/FFLCH, Universidade de São Paulo

Precisamos, enquanto sociedade urbana, de uma pandemia com dramáticas consequências para finalmente ver o invisível?

Milhões de brasileiros habitam há décadas as periferias de nossas cidades onde falta tudo, do saneamento básico e abastecimento de água - desafios superados há mais de 120 anos nas cidades dos países desenvolvidos - aos equipamentos sociais, de saúde, áreas de lazer, inclusão digital, acesso à mobilidade urbana e, claro, à moradia digna. Estima-se em quase 8 milhões de unidades o déficit habitacional do país, ou seja, aproximadamente 18 milhões de pessoas[1]. Nestes territórios de vulnerabilidade social das cidades brasileiras esta população se contamina e morre por conta do COVID-19, mas é esta que de fato, já estava muito mais vulnerável às diversas doenças decorrentes de uma vida em cidades insalubres há muito tempo.

Ou seja, o desafio por cidades mais saudáveis passa pela inclusão socio-territorial e vice-versa.

Cidades mais sustentáveis, inclusivas e saudáveis precisam reverter o grave sintoma do desequilíbrio do uso do solo, que reflete uma incongruência no desenvolvimento econômico e social urbano: periferias populosas e distantes, carentes de toda infraestrutura e nas regiões centrais, dotadas de infraestrutura, com baixa densidade populacional.

As cidades constituídas de uma rede polinucleada de centralidades multifuncionais e densas, dotadas de adequada infraestrutura de suporte e conectadas por adequados sistemas de mobilidade ativa e de transportes públicos é o desafio do urbanismo contemporâneo. É a "cidade de 15 minutos" que a Prefeita de Paris[2] vem promovendo rapidamente desde o início da pandemia - assim como Barcelona, Nova Iorque, Bogotá e tantas outras -, mas são também as nossas periferias e demais regiões que devem se transformar em "bairros completos", onde as pessoas possam encontrar em territórios de até 800 metros as demandas usuais de suas vidas cotidianas: morar, trabalhar, recrear, serviços e comércio locais, equipamentos públicos e áreas de lazer.

No que se refere ao enfrentamento dos desafios específicos da inclusão socio-territorial, há que se avançar rapidamente nas políticas públicas, programas e ações concretas do chamado urbanismo social. Trata-se, em síntese, de um conjunto de políticas públicas e ações coordenadas de maneira integrada que visam promover cidades mais inclusivas, particularmente pela transformação e pela qualificação de territórios de maior vulnerabilidade. De modo propositivo, consistente, incremental e contínuo, baseado em políticas públicas integradas e territorializadas, com as respectivas ações estratégicas, sistêmicas e locais. Medellín é a grande referência, que tem conseguido desde 2003 uma contínua transformação da cidade, promovendo a inclusão social, principalmente nos territórios de vulnerabilidade, com integração e territorialização das políticas e ações públicas, através dos PUIs (Projetos Urbanos Integrais). O Brasil teve um robusto programa similar, o Favela-Bairro no Rio de Janeiro, infelizmente interrompido no início do século e diversos outros programas importantes de urbanização de favelas, mas invariavelmente sem a fundamental continuidade e raramente constituídos da integração setorial das políticas públicas.[3]

Os territórios influenciam a saúde das pessoas. No entanto, é notável a ausência de estudos específicos no Brasil sobre uma área denominada “slum health” (ou saúde das favelas, entendida aqui como comunidades mais vulneráveis). Esta lacuna impede ações de intervenção mais diretas nos problemas de saúde mais relevantes. Um levantamento das causas de internação mais importantes nas comunidades do município de São Paulo, de 2012 a 2016, mostra que depois das internações relacionadas à gravidez, a segunda causa são as doenças do aparelho respiratório e a terceira, as lesões. Tanto a segunda quanto a terceira estão diretamente associadas com a questão da qualidade da moradia. A falta de ventilação, presença de umidade e fungos e várias pessoas dormindo em um cômodo facilitam a proliferação de bactérias e vírus. Moradias autoconstruídas que ficam inacabadas, terminando na laje, são a principal causa de lesões entre os moradores devido a quedas. É fácil entender a relevância e o elo da arquitetura e do urbanismo com a saúde, tanto para a melhora da qualidade das habitações quanto no espaço público.

Mas a questão da saúde ultrapassa os domínios da arquitetura e urbanismo. Está subjugada também à esfera de atuação do crime organizado nestes territórios vulneráveis. Programas de vacinação são impedidos de atuar, agentes de saúde são proibidos de entrar em algumas áreas e até mesmo as ambulâncias impedidas de socorrer os pacientes de COVID-19. Além disso, lembre-se que milhões de pessoas ali habitam sem condições de trabalhar remotamente, assim como sem acesso digital para ensino dos filhos.

Ainda assim e mesmo longe de se ter planos urbanos locais integrados em nossas cidades e seus territórios de vulnerabilidade social, tem-se observado diversas experiências locais, aprendidas em 2020, demonstrando a importância de comunidades com governanças locais historicamente constituídas e uma governança urbana inclusiva inovadora melhorando a resiliência necessária durante a recuperação do COVID-19, bem como transformações de longo prazo. De Paraisópolis e Jardim Colombo, em São Paulo, à Favela da Maré, no Rio de Janeiro, dentre outras.[4]

Conforme recente publicação da Cities Alliance, Upgrading Precarious Neighbourhoods is Key for Post-Pandemic Recovery, "durante a pandemia, em muitas cidades da América Latina, ficou claro que a sociedade civil costuma ser a primeira linha de resposta em assentamentos urbanos precários nos bairros e distritos. Do fortalecimento da solidariedade em vários níveis ao fornecimento de iniciativas econômicas em torno da segurança alimentar e estratégias de prevenção, saneamento e redução da renda - não teria sido possível sem abordagens de baixo para cima. Na verdade, a crise demonstrou que a coordenação e a coprodução de respostas com as pessoas criam soluções e intervenções muito mais eficazes no território".[5]

Momentos de crise costumam abrir novas perspectivas. A história mostra como as pandemias, doenças e guerras serviram para as cidades se reinventarem e se qualificarem, adotando novos padrões, normas e hábitos de saúde urbana. Aproveitemos o poder criativo do momento para desencadear ações de transformação positiva.

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Fotos da capa: Em diversos territórios de vulnerabilidade social, a comunidade, através da governança local, rapidamente se organiza para construir estratégias de mitigação frente à pandemia desde março de 2020: acesso a sistemas de ajuda pública; coleta e distribuição de doações (equipamentos de higiene e alimentos); recepção psicológica; organização do território em subsetores geridos por guardiãs orientadoras, entre outras ações.

[1] http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/19490/Cadernos%20FGV%20Direito%20Rio%20-%20Série%20Cl%C3%ADnicas%20-%20Volume%208.pdf?sequence=1&isAllowed=y

[2] O projeto para tornar Paris uma cidade de 15 minutos

[3] LEITE, Carlos et al. Social Urbanism in Latin America: Cases and Instruments of Planning, Land Policy and Financing the City Transformation with Social Inclusion. Cham (Suíça): Springer Nature, 2020.

[4] Ver: iniciativa Pacto pelas Cidades Justas e G10 das Favelas

[5] https://www.urbanet.info/upgrading-is-key-for-post-pandemic-recovery/

 

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